Alan Pereira da Silva
"O Aborto dos Outros" é um filme sobre maternidade, afetividade, intolerância e solidão. A narrativa percorre situações de abortos previstos em lei ou autorizados judicialmente, feitos em hospitais públicos, e situações de abortos clandestinos. O filme mostra os efeitos perversos da criminalização para as mulheres e aponta a necessidade de revisão da lei brasileira. O filme é profundo e toca de maneira peculiar aqueles favoráveis à descriminalização do aborto.
Conhecer a realidade do aborto no Brasil é um enorme desafio, pois implica estudar uma prática criminalizada e cercada de tabus morais. Os riscos à saúde impostos pela ilegalidade do aborto são majoritariamente vividos pelas mulheres pobres e/ou pelas que não têm acesso aos recursos médicos para realizar um aborto seguro. O que diferencia as mulheres confrontadas ao drama da necessidade do aborto é, antes de qualquer coisa, a chance de passar de forma mais ou menos segura pelo processo. Se todas são criminalizadas e expostas a danos morais, do ponto de vista da saúde pública, podemos afirmar que, no Brasil, o aborto é a prática de saúde perpassada pelas maiores injustiças e desigualdades ligadas à situação socioeconômica das mulheres.
No Brasil conforme o Código Penal no Art. 128 - não se pune o aborto praticado por médico, aborto necessário conforme inciso I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante; e no caso de aborto de gravidez resultante de estupro, no inciso II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.
Nesse cenário de discussão, dentro das reflexões da bioética, e de direitos, acreditamos que o Código de Ética profissional dos Assistentes Sociais de 1993 – CE / 93 assume nesse espaço, importante postura ética frente esta questão, não se posicionando pelos valores de uma moral religiosa ou pela força de Lei atribuída pelo consenso, mas uma postura que parte da premissa laica, na defesa intransigente dos direitos humanos e recusa do arbítrio e do autoritarismo, pela autonomia, emancipação e plena expansão dos indivíduos sociais, pelo reconhecimento da liberdade como valor ético central e das demandas políticas a ela inerentes, conforme inscrito nos princípios fundamentais do CE/93 dos Assistentes Sociais.
Ainda sobre a defesa de direitos, é preciso considerar o papel político pedagógico da profissão, com o dever de informar, posicionado em favor da eqüidade e justiça social, que assgeure universalidade de acesso aos bens e serviços relativos aos programas e políticas sociais, bem como sua gestão democrática, articulando com os movimentos de outras categorias profissionais que partilhem dos princípios do Código de Ética Profissional e com a luta por uma sociedade emancipada e em usufruto de cidadania. Com base nessas proposições, e no Código Penal Brasileiro, no seu Art. 128, torna-se necessário a defesa intransigente de aborto nos casos estabelecidos pelo Código Penal, como uma luta pela efetivação dos direitos das mulheres empenhando-se na eliminação de todas as formas de preconceito, incentivando o respeito à diversidade, à participação de grupos socialmente discriminados e à discussão das diferenças.
Contudo, num país onde são realizados, segundo as estimativas, um milhão de abortos por ano, a maioria clandestina, falar somente dos procedimentos legais seria deixar muitas mulheres de fora da discussão. Neste sentido, as mulheres são duplamente condenadas, pela falta de autonomia política e de direito sobre o próprio corpo, são passíveis de penalidades criminais ao decidirem interromper uma gravidez voluntariamente; se optarem por abortar mesmo assim, são obrigadas a fazerem o procedimento clandestinamente. Com isso, as mais atingidas são, claro, as mais pobres, que se sujeitam a situações desumanas, o que para muitos especialistas em direito fere o direito constitucional de ir e vir, de liberdade de autonomia, ainda que o direito à vida seja inalienável.
Ao analisar o filme “O aborto dos outros” e dentre algumas discussões que se puseram frente à temática do filme, torna-se claro que a moral religiosa, impede que algumas mulheres se não a maioria, façam valer seus direitos, tal como o aborto em casos previstos pelo Código Penal. Faz-se necessário pontuar que tais questões se restringem a discussões de qual é o início da vida, sem considerar de forma contextualizada de que vida estamos referindo, ou que tipo de vida esta sendo discutida, a saúde da gestante, e os transtornos psicossociais na maioria das vezes oriundos de estupros, que podem ser alarmados e trazerem grandes conflitos psicológicos, sociais etc. Nesse contexto, ainda que exista uma norma de conduta religiosa de acordo com os costumes e crédulos, é preciso considerar conforme prevê o CE/1993 dos Assistentes Sociais a autonomia, emancipação e plena expansão dos indivíduos sociais, de forma justa e compreendida sem julgamentos de valores que culminam na descriminação e injustiça social, fazendo do exercício profissional do Serviço Social um ato sem ser discriminado, nem discriminar, por questões de inserção de classe social, gênero, etnia, religião, nacionalidade, opção sexual, idade e condição física.
A análise que projetamos do CE/1993 frente à temática do documentário se volta pela necessidade de buscar o enfrentamento da questão do aborto, por um viés que contextualize quais fundamentos levam ou levaram essas mulheres a praticar tal ato. Nessa perspectiva é preciso considerar, diferentes atores sociais, na busca por uma negociação de conflito construído há anos de história, pela marginalização, violência e injustiça social contra as mulheres. Especificamente sobre a possibilidade de ter ampliado o direito ao aborto seguro, de qualidade e gratuito, em sendo legalizado, não se concretizará numa forma de incentivo a mulher não se proteger de uma gravidez indesejada, da maneira como pode ou como a saúde pública lhe garante acesso durante a relação heterossexual; nem tampouco incentivará a mulher a engravidar para fazer o aborto. Trata-se de não aceitar mais a realidade de milhares de abortos feitos clandestinamente, de forma insegura e comercial, significa respeitar a decisão das mulheres, garantindo sua saúde, o exercício do direito de viver e em plenitude. A maternidade altera significativamente o cotidiano das mulheres, por isso a qualquer tempo da vida uma gravidez não desejada pode ser questionada pela mulher. Lamentavelmente a responsabilidade com a criança ainda repousa muito mais sobre a mãe e bem menos sobre o pai, tanto isso se mostra como verdadeiro que raros são os estudos que mencionam a “paternagem”.
Para além dessas questões reflexivas, é importantíssimo compreender que as pessoas atualmente estão inseridas num contexto sócio-econômico, político e cultural altamente excludente e individualizado. Ao mesmo tempo em que são individualizadas as relações, também individualizam as necessidades e o acesso aos direitos, nesse sentido consideramos que é na regulação das relações sociais, nos conflitos historicamente construídos e na construção de uma nova ordem societária extinta de qualquer juízo de valor que sobressaia a integridade física, psicológica e social do indivíduo que o CE / 1993 vem contribuindo para novas diretrizes do exercício de cidadania, sem segregar do conjunto dos direitos, qualquer etnia, gênero, crédulos e afins.
REFERÊNCIAS
GALLO, Carla. O aborto dos outros. Olhos de cão. Brasil, 2008.
CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL . Código de Ética do/a Assistente Social. Lei 8.662 / 93 e Regulamentação da Profissão. 9° ed. Brasília, 2011
DIREITO PENAL BRASILEIRO - Parte Geral. Revista dos Tribunais. 1°ed. Brasília 2011.
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